Opinião

A história da cannabis e a sua situação legal no Brasil

Autor

  • Emília Campos

    é advogada sócia do escritório MCZ Advocacia professora do MBA em Blockchain Developments da FIAP e autora do livro Criptomoedas e Blockchain – O Direito no Mundo Digital da Editora Lumen Juris.

22 de maio de 2020, 21h05

Falar sobre cannabis sem que isso seja considerado "apologia às drogas" é um desafio, no Brasil e em outros lugares do mundo, tamanha a polaridade que o tema desperta. Mas o fato é que pouco se fala sobre os aspectos históricos e políticos relacionados à sua proibição e do quanto o tema está rodeado de preconceito e disputa de poder.

Até 1920, o cânhamo, extraído da maconha, que já era cultivado havia séculos pelo mundo, dominava a indústria de tecidos, enquanto quase toda indústria do papel também estava baseada nessa matéria-prima. No entanto, além de servir de insumo para uma indústria em ascensão, a planta também era usada como fumo para negros, imigrantes e incômodos intelectuais boêmios na Europa. Nos Estados Unidos, a maconha era utilizada pelas classes menos privilegiadas e vistas com antipatia pela classe média branca, como os imigrantes mexicanos.

Mas, ao mesmo tempo, a planta também era utilizada desde a farmácia, como na fabricação de xaropes, pílulas para dor e para dormir, até a indústria automobilística, já que a Ford estava desenvolvendo combustíveis à base de óleo de maconha. Com a proibição da bebida acarretada pela Lei Seca nos Estados Unidos, o consumo de cannabis disparou e, preocupado, o recém-criado Comitê de Proibição começou a espalhar boatos sobre crimes praticados sob a influência da planta, quando, na verdade, a criminalidade havia aumentado por conta da crise de 1929.

Então, com o lobby da indústria petroleira e de tecidos sintéticos, saiu o empurrão que faltava para a criminalização da cannabis. Após isso, uma guerra de interesses ajudou a enterrar, de vez, a reputação da planta. Reportagens negativas sobre maconha em um jornal cujo dono era um importante produtor de papel, sem qualquer fundamento científico, decretaram a pena de morte da cannabis.

E isso foi se espalhando ao redor do mundo, mediante o esforço intencional dos diplomatas americanos, em suas atuações na Liga das Nações e na ONU. Se a cannabis era utilizada principalmente entre as minorias, a sua proibição não deixava de ser interessante aos governos, porque toda proibição é uma forma de controle social. E foi exatamente por esse motivo que a proibição da cannabis se espalhou tão rapidamente ao redor do mundo.

No Brasil, em 1830 foi promulgada a primeira lei proibindo o uso e a venda de maconha. Estranhamente, naquela época a pena para quem usava a erva era mais rigorosa do que para quem traficava. A explicação? Simples, naquele tempo, os traficantes eram da classe média branca e os usuários, os escravos negros….

Os estudos científicos
Vários estudos científicos foram realizados testando os efeitos do uso da cannabis. Já em 1894, na Índia, houve a preocupação que o "bhang", bebida típica feita à base de maconha, pudesse causar danos cerebrais. Uma comissão foi formada e após, dois anos de estudos, recomendou que ele não fosse proibido, pois era inofensivo se usado com moderação, sendo até benéfico. Inúmeros foram os pesquisadores ao redor do mundo que se debruçaram sobre o tema e recomendaram que as proibições contra a planta fossem abrandadas.

Em 1944, um dos mais populares prefeitos de Nova York, Fiorello La Guardia, encomendou outra pesquisa. Em meio à histeria antimaconha de Henry Anslinger, criador do FBN (Federal Bureau of Narcotics) e crítico feroz da cannabis, La Guardia resolveu conferir cientificamente quais os reais perigos da "droga assassina". Os cientistas escolhidos fizeram testes e concluíram que o uso prolongado da cannabis não acarreta degeneração física ou mental. No entanto, tratava-se de uma guerra de poderes: Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono da petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da famosa indústria de tecidos Du Pont.

"A Du Pont foi uma das maiores responsáveis por orquestrar a destruição da indústria do cânhamo", conforme escreveu o escritor Jack Herer em seu livro "The Emperor Wears No Clothes[1]. Naquela época, essa empresa estava desenvolvendo fibras sintéticas como o náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira, produtos que disputavam o mercado com o cânhamo.

Várias pesquisas semelhantes foram encomendadas por outros governos a partir de 1960. Relatórios foram produzidos na Inglaterra, no Canadá e no Estados Unidos e todos recomendaram um afrouxamento nas leis contra a cannabis. Naquela época, pouco foi feito por esses países, que, atualmente, já liberaram seu uso, inclusive recreativo, como Canadá e vários estados dos Estados Unidos.

Por outro lado, houve uma boa experiência na Holanda quando, em 1976, o país decidiu parar de prender usuários de maconha, limitando a compra e uso aos cafés autorizados. O resultado é que o índice de usuários continua comparável aos de outros países da Europa, enquanto o de jovens dependentes de heroína caiu. Acredita-se que, ao tirar a maconha da mão dos traficantes, os holandeses separaram essa droga das mais pesadas e, assim, dificultaram o acesso a elas.

Sobre sua capacidade medicinal, são conhecidos seus efeitos no tratamento de pessoas em fase de quimioterapia contra enjoos, para os portadores de HIV no aumento do apetite, para esclerose múltipla no alívio dos sintomas dos fortes espasmos musculares, no alívio de dores em geral, ansiedade e dependência de drogas.

Situação legal da cannabis no mundo e no Brasil
O fato é que, segundo informações da ONU, o mundo tem aproximadamente 147 milhões de usuários de cannabis. E, apesar de a proibição ainda ser a regra na maioria dos países, após a decisão pioneira da Holanda outros países adotaram o modelo de descriminalizar o uso, como Espanha, Itália, Portugal, ou mesmo legalizá-lo, como o Uruguai.

Nos Estados Unidos, apenas três dos 50 estados proíbem qualquer uso da maconha, recreativo e medicinal. Illinois se tornou recentemente o 11º estado a legalizar seu uso recreativo. Na América Latina, o Uruguai legalizou o uso medicinal em 1975 e o uso recreativo em 2013, enquanto Argentina, Chile, Colômbia e Peru já legalizaram o uso medicinal. O México será o próximo.

E qual a posição do Brasil?

Em tese, o uso de cannabis ainda é ilegal e tipificado como crime, nos termos da Lei nº 11.343/2006, chamada Lei de Drogas, mas punido com advertência, prestação de serviços à comunidade ou medidas educativas. Isso também inclui quem cultiva para uso pessoal pequena quantidade. Importante comentar que a Lei de Drogas, apesar de criminalizar as condutas relacionadas às drogas, também admite expressamente, em seu artigo 2º, parágrafo único, a manipulação e cultivo dessas substâncias para fins medicinais e científicos, desde que mediante licença prévia.

No Senado Federal tramita o Projeto de Lei n.º 514 de 2017, que descriminaliza o cultivo da cannabis para uso pessoal terapêutico, enquanto no Supremo Tribunal Federal ainda se aguarda o julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, que discute a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, o qual define como crime o porte de drogas para uso pessoal. O julgamento teve início em 2015 e já esteve pautado para ser retomado em junho e novembro de 2019, mas acabou não acontecendo e, até o momento, três ministros votaram.

O relator, ministro Gilmar Mendes, votou pela inconstitucionalidade do artigo 28. O ministro Edson Fachin defendeu descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio. Após o voto de Barroso, que sugeriu que porte de até 25 gramas de maconha seja parâmetro para uso pessoal, o julgamento foi novamente suspenso por pedido de vista do ministro Teori Zavascki, falecido. Agora o julgamento, sem data para acontecer, será retomado com o voto de Alexandre de Moraes.

Por outro lado, no âmbito do uso medicinal, mais um passo foi dado em 9 de dezembro de 2019, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC 327/2019), criou procedimentos para fabricação e importação, além de estabelecer requisitos para a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização, de produtos de cannabis para fins medicinais, por pessoas jurídicas também.

Já em 2016, em cumprimento a uma decisão judicial proferida em ação civil pública [2], por meio da RDC 66/2016, a Anvisa regulamentou a prescrição médica e importação, por pessoas físicas, de produtos à base de cannabidiol e tetrahidrocannabidiol (THC) para uso medicinal.

Contudo, da mesma forma que a RDC 66/2016, infelizmente a RDC 327/2019 também não abordou a autorização do plantio da cannabis, no caso da RDC 66 para consumo do paciente, obrigando-o a importar o produto, encarecendo sensivelmente o tratamento. Já em se tratando da RDC 327, o aumento é no custo de produção dos medicamentos, pois a matéria-prima também precisa ser importada pelas empresas fabricantes no Brasil, o que, no final, encarece o produto para o paciente da mesma forma.

E regulamentar o plantio é, de fato, uma atribuição da Anvisa, já que o Decreto nº 5.912/2006, que regulamentou a Lei de Drogas, previu expressamente a responsabilidade do Ministério da Saúde em autorizar a cultura de plantas das quais possam ser extraídas drogas de uso medicinal ou científico. Nesse sentido, bastava ter alterado a Portaria nº 344/1998 da Anvisa, que dispõe sobre autorização para cultivo de determinadas plantas para fins medicinais para incluir a cannabis.

Além disso, a recente RDC 327 também determina que só poderá ser prescrita medicação à base de cannabis se esgotadas todas as opções terapêuticas no mercado brasileiro, ou seja, retira do médico a autonomia técnica para indicar efetivamente o que entende como melhor tratamento.

Conclusão
Ainda que pequenos, esses avanços já acarretaram um aumento do número de casos envolvendo o assunto no Poder Judiciário, a pedido de associações e pacientes, visando a obter autorização judicial de plantio para uso próprio [3], afinal, é injustificável sobrecarregar o custo do tratamento dos pacientes pela falta de regulamentação da Anvisa sobre autorização de plantio da cannabis. E a boa notícia é que já existem precedentes favoráveis nesse sentido [4].

Mas a indústria farmacêutica brasileira, interessada em fabricar produtos à base de cannabis para atender a esse mercado, também precisará importar a matéria-prima, o que tornará esses tratamentos para doenças como câncer, Alzheimer, paralisia cerebral, epilepsia, entre outras, mais onerosos do que se o cultivo fosse regulamentado no Brasil, aumentando o "caldo" já nada ralo de pedidos de liminar perante o Poder Judiciário, e o que é pior, com desfechos, muitas vezes, diferentes, a depender do entendimento de cada magistrado sobre o tema.

Assim, a resolução da Anvisa pode ser considerada mais um passo rumo a uma política sobre cannabis no Brasil, tirando o país do obscurantismo em relação ao tema e melhorando significativamente a condição dos pacientes que aguardam por mais opções e melhores tratamentos. É inegável, contudo, que ainda existe um longo caminho a ser trilhado, não só no campo científico, mas, principalmente, político, em que um órgão não fique jogando para o outro a responsabilidade de mudar o status quo sobre um assunto que há anos vem sendo tratado como tabu.

 


[1] "O imperador está nu", ainda sem tradução

[2] ACP nº 0090670-16.2014.4.01.3400, 16ª Vara DF.

[4] Justiça Federal do Paraná, Habeas Corpus nº 2019.4.04/7000, Justiça Federal da 1ª Região, Proc. 10290099-51.2019.4.01.3400

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    é advogada, palestrante, professora do MBA em Blockchain Technologies, apresentadora do canal Descomplicando o Direito no YouTube e autora do livro "Criptomoedas e Blockchain — O Direito no Mundo Digital".

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