INFORME ESPECIAL — O BACEN REGULAMENTA AS VASPS

O Banco Central do Brasil acaba de publicar o conjunto normativo que inaugura oficialmente o regime de supervisão das prestadoras de serviços de ativos virtuais (VASPs). Foram editadas três resoluções complementares que, em conjunto, dão execução à Lei nº 14.478/22 e estabelecem as bases do novo sistema de autorização, governança e prudência aplicável ao setor.

A Resolução BCB nº 519/2025 define o procedimento de autorização e os requisitos societários, operacionais e de governança das VASPs, marcando a equiparação dessas entidades às instituições financeiras tradicionais em matéria de controle, capital e supervisão.

A Resolução BCB nº 520/2025 detalha as condições de funcionamento e a transição para as empresas que já operam no mercado, fixando prazos, fases e obrigações específicas de adaptação.

Por fim, a Resolução BCB nº 521/2025 trata da integração das atividades de ativos virtuais ao sistema cambial e de pagamentos, disciplinando o enquadramento das operações internacionais e os deveres de reporte.

Nesta edição, analisamos a Resolução BCB nº 519/2025, que inaugura o regime jurídico das VASPs no país e estabelece os fundamentos do licenciamento e supervisão pelo Bacen.

Nos próximos boletins, abordaremos em detalhe as Resoluções 520 e 521, completando a leitura do novo marco regulatório para o mercado de criptoativos no Brasil.

1) Resolução Bacen 519/2025 – O que é — e por que importa

A Resolução BCB nº 519/2025 “disciplina os processos de autorização” de quatro tipos de instituições, incluindo sociedades prestadoras de serviços de ativos virtuais (VASPs) — é o “ato-mãe” de licenciamento e vida regulatória dessas empresas perante o Bacen.

2) Escopo e requisitos de autorização (Art. 2º)

A norma lista 10 requisitos para qualquer autorização (constituição, funcionamento, alterações, etc.). Entre os pontos nucleares:

  • Capacidade econômico-financeira dos controladores compatível com o capital necessário ao negócio.
  • Origem lícita dos recursos de integralização/aquisição.
  • Viabilidade econômico-financeira do empreendimento.
  • TI e governança proporcionais à complexidade e aos riscos.
  • Reputação ilibada de administradores, controladores e detentores de participação qualificada (PF).
  • Capacitação técnica dos administradores.
  • Atendimento aos requerimentos mínimos de capital e patrimônio (remissão direta ao novo regime prudencial publicado na semana).
  • Endereço da sede (uso efetivo e exclusivo; vedado coworking/escritório virtual, salvo no mesmo conglomerado).

Novidades sensíveis:

O Bacen pode considerar, subsidiariamente, no caso de VASPs já em atividade, indicadores como patrimônio líquido e lucro recorrente (últimos 5 anos) no teste de capacidade dos controladores. É um alívio regulatório pontual para incumbentes que não tinham captação bancária tradicional.

Plano de negócios atualizado, à disposição do Bacen, podendo ser exigido a qualquer tempo.

3) Regime contínuo de autorizações e poder de veto (Arts. 3º, 16–19)

A 519 não se limita ao “ok para operar”: ela controla a vida societária da VASP, com hipóteses de revisão, indeferimento e cancelamento.

O Bacen pode arquivar/indeferir pedidos por falsidade/omissão documental ou circunstâncias preexistentes que afetem os requisitos — e exigir desfazimento/alienação em casos de controle/reorganização irregulares.

Se indeferir o funcionamento, a VASP tem 30 dias para cessar serviços, comunicar clientes, devolver ativos virtuais (para instituições habilitadas indicadas pelos clientes) e devolver recursos financeiros aos titulares. É uma saída ordenada.

Cancelamento da autorização pode ocorrer a pedido ou de ofício; há regras supletivas para reorganizações.

– “Chão de fábrica jurídico”: criar políticas de reversão, contratos com custodiantes alternativos, playbooks de comunicação — tudo precisa existir antes do go-live.

4) Formato societário e governança (Art. 24)

Se a VASP for Ltda., o contrato social deve prever a aplicação supletiva da Lei das S.A. (Lei 6.404), inclusive sobre retenção de lucros e reservas.

É um “upgrade” de governança: conselhos/comitês, reserva de lucros, regras de reporte — padrão CVM como referência mínima.

5) Inspeção pré-operacional (Art. 25)

O Bacen pode inspecionar a requerente antes de conceder a autorização, para checar se a estrutura de TI e governança condiz com o plano (e indeferir se não corrigir).

Equivalente a “user acceptance test regulatório”. Não dá para se falar em “MVP improvisado”: a operação tem de estar pronta de verdade.

6) Transição para VASPs já ativas — regime em duas fases (Art. 26)

Para VASPs que já estavam em atividade (Lei 14.478, art. 9º), o processo tem Fase 1 e Fase 2:

Fase 1 (filtro inicial):

  1. a) prova de que estava operando na data de vigência;
  2. b) checagem de reputação dos controladores/participações qualificadas (Cap. V);
  3. c) atendimento ao capital mínimo (inciso IX do art. 2º).

Fase 2:

Verificação de todos os demais requisitos do art. 2º (governança, TI, etc.). O Bacen ainda pode exigir Demonstrações Financeiras auditadas e atualizações documentais.

– O capital mínimo entra já na Fase 1. Sem ele, a VASP não passa do portão.

7) Vigência e alcance (Arts. 27–28)

A 519 aplica-se aos pedidos protocolados a partir da sua vigência.

Entra em vigor em 2 de fevereiro de 2026.

– Janela curta de planejamento de capital e rearranjo societário até fev/2026. Quem não se mexer agora, perde timing.

8) Capital social mínimo (gancho com as outras normas)

O art. 2º, IX, “puxa” os requisitos mínimos de capital e patrimônio da regulamentação em vigor (i.e., o novo regime prudencial publicado na mesma leva).

Em declarações públicas, a Diretoria do Bacen referiu piso a partir de R$ 10,8 milhões e patamar até R$ 37 milhões, conforme mix de atividades e intensidade de TI/captação.

– Estratégia de escopo vira ferramenta para modular capital: iniciar com intermediação sem custódia própria, terceirizar infraestrutura intensiva, e escalonar serviços.

9) O que mudou em relação à CP 109 (e por que a 519 é mais dura)

Tema CP 109 Resolução 519 Efeito real
Natureza Diretrizes e intenções Obrigação vinculante Sem “interpretação flexível”
Capital mínimo “A definir” Exigido na Fase 1 Sem capital, sem protocolo
Governança/TI Boas práticas Condição de licença + inspeção “MVP improvisado” não passa
Controle/participação Genérico Regras rígidas; foco em idoneidade, cadeia e qualificação Reestruturação de holdings
Sede/Endereço Silenciosa Proibido coworking Exige sede real
Saída ordenada Não detalhada Devolução de ativos/recursos em 30 dias Plano de contingência obrigatório

 

10) “Red flags” jurídicas para boards e sócios (prioridade alta)

Capital na Fase 1: sem comprovação, o processo não anda. Estruture aportes/lock-ups desde já.

Cadeia de controle e reputação: due diligence de controladores/participações qualificadas; prepare D&O, comprovações e eventuais substituições.

Plano de negócios auditável: mantenha versão viva e coerente com TI/governança.

Inspeção pré-operacional: trate como projeto de implantação; políticas, logs, segregações operacionais ativas.

Plano de saída (caso indeferimento): contratos com custodiantes alternativos, cronograma de devolução e comunicação a clientes.

11) Checklist de adequação (executável)

Até 2/2/2026 (go-live regulatório):

Capital: pactuar aumento/integração; atas, boletos de integralização, acordo de acionistas prevendo tranches por degraus de escopo. (Art. 2º, IX)

Controle/Idoneidade: KYC de sócios/qualificados, certidões, fit & proper interno, eventuais reestruturações. (Art. 26, I-b)

Plano de negócios: versão atualizada; cenários; indicadores. (Art. 2º, §§ 3º–4º)

Sede: contrato não compartilhado; alvarás; fotos/plantas. (Art. 2º, § 6º)

TI & Governança: políticas ativas; segregação de funções; trilhas de auditoria; comitês/cargos; manuais. (Art. 2º, IV–V)

Documentos Fase 1: prova de operação na data de vigência; capital mínimo; idoneidade. (Art. 26)

Plano de contingência: playbook de saída ordenada (30 dias), contratos com custodiantes alternativos e mensagens a clientes prontas. (Art. 18)

12) Conclusão — o que contar para o mercado (e para clientes)

A 519 operacionaliza a promessa da CP 109 e adota postura prudencial dura: capital na entrada, governança/ti testadas, filtros reputacionais, inspeção prévia e plano de saída.

O marco temporal é 2 de fevereiro de 2026 — e VASPs incumbentes entram por duas fases, começando por capital + idoneidade + prova de operação.

Para players menores, o jogo será estratégia de escopo: começar só com intermediação (sem custódia própria), terceirizar o intensivo de TI, e escalar depois, para caber no capital.

A mensagem-chave externa é de segurança jurídica com custo de conformidade elevado; a mensagem-chave interna é disciplina: governança, TI, controles e capital antes do licenciamento.

Emília Campos

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