QUANDO A INOVAÇÃO UNIVERSITÁRIA NÃO CHEGA ÀS PESSOAS

Nos bastidores da pesquisa brasileira há um paradoxo: produzimos ciência de ponta, mas uma parte relevante dela não vira produto, serviço ou política pública. Hoje mesmo revisitei um caso emblemático: tecnologia concebida há mais de 10 anos, pedido de patente redigido sem especialista (e sem o inventor à mesa), indeferido e, pior, publicado de modo a destruir a novidade absoluta, matando a chance de proteção futura. Não é exceção, é sintoma.

O retrato em números (Brasil e mundo)

  • Em 2023, o mundo registrou 3,55 milhões de pedidos de patente, alta de 2,7% vs. 2022 — ou seja, a corrida tecnológica segue acelerando[1].
  • No Brasil, o INPI registrou 25.062 depósitos de patentes de invenção em 2024, número 1,2% inferior ao de 2023, sinalizando estabilidade com leve tendência de queda no total (dados anuário estatístico)[2].
  • Um dado contraintuitivo: quase 25% dos pedidos de patente de residentes no Brasil em 2023 foram feitos por instituições de ensino superior (IES). Nos EUA, esse percentual é inferior a 5%. O número indica vitalidade acadêmica, mas também uma baixa participação empresarial na proteção local — o que ajuda a explicar o “gap” na transferência para o mercado[3].

Mesmo com desafios, há bons desempenhos pontuais: a Unicamp figurou entre os maiores depositantes nacionais de PI em 2023; UFV e Instituto Federal Catarinense também apareceram no top 15/10, com dezenas de pedidos de invenção cada — sinais de que, onde há governança, capacitação e pipeline, os resultados vêm[4].

Por que as tecnologias “param” na universidade?

1. Desenho jurídico tardio (ou equivocado)

Proteger depois de publicar (artigo, congresso, edital) ainda é rotina. Sem estratégia de anterioridade, busca de arte prévia e redação técnica robusta, o pedido nasce frágil ou nasce morto.

2. NITs sobrecarregados e sem especialização setorial

A Lei de Inovação criou e estruturou os NITs, mas muitos ainda operam com pouca equipe, alta rotatividade e orçamento limitado para busca, redação e prospecção de parceiros[5].

3. Baixa cultura de cocriação com o inventor

Quando o inventor não participa da redação de reivindicações, perde-se o “coração técnico” da solução.

4. Distância do mercado

Parte expressiva dos depósitos ainda ocorre só no Brasil, com pouca estratégia internacional, o que reduz atratividade para licenciamento e coinvestimento.

5. Governança de propriedade intelectual difusa

Políticas internas pouco claras sobre titularidade, divisão de royalties e conflitos de interesse travam a negociação com empresas.

O que países líderes fazem diferente

Nos países que conseguiram transformar pesquisa em inovação de impacto como Estados Unidos, Coreia do Sul, Alemanha, Israel e China, a proteção da propriedade intelectual não é vista como um ato isolado, e sim como parte do ciclo natural da pesquisa aplicada.

A diferença começa na cultura: o pesquisador é estimulado desde cedo a pensar em soluções que possam ser transferidas para o mercado, e não apenas publicadas em artigos. Em muitas universidades, o pedido de patente é uma etapa prévia à divulgação científica, tratada como requisito para a própria publicação.

Depois, vem a estrutura de apoio. Os escritórios de transferência de tecnologia (TTOs, nos EUA) ou centros de inovação universitários funcionam como verdadeiras pontes entre o laboratório e as empresas. Eles contam com equipes multidisciplinares (engenheiros, advogados de patentes, economistas, comunicadores) que ajudam o pesquisador a:

– avaliar o potencial de mercado da invenção;

– estruturar pedidos de patente robustos e internacionalizáveis;

– buscar investidores e parceiros industriais;

– negociar contratos de licenciamento e startups spin-offs.

Outro ponto central é o financiamento da fase crítica, entre a prova de conceito e o protótipo comercializável. Muitos países dispõem de fundos públicos e privados de “gap funding”, que garantem o avanço de tecnologias promissoras até atingirem maturidade tecnológica (TRL) suficiente para atrair o mercado.

Além disso, há metas claras de desempenho. Nos EUA, por exemplo, o sistema criado pela Bayh-Dole Act exige que universidades reportem não apenas o número de depósitos de patentes, mas também quantas delas foram licenciadas, geraram receita ou criaram novas empresas. É uma lógica de impacto, não apenas de volume!

Por fim, há um elemento cultural essencial: reconhecer o inventor. Os royalties são divididos de forma transparente entre o pesquisador, o laboratório e a instituição. Isso motiva o engajamento e transforma o ato de proteger em algo coletivo, não burocrático.

7 movimentos concretos para virar o jogo no Brasil

1. IP by design desde o TRL 2–3: implantar gate obrigatório de PI antes de qualquer divulgação pública (resumo de congresso, edital de fomento, pré-print). Checklist mínimo: busca de anterioridade, mapeamento de inventores, draft de reivindicações e estratégia territorial.

2.  Redação profissional de patentes com o inventor na sala: workshops técnico-jurídicos de 2–3 horas por família de patente, com claim chart e rotas de contingência (dependentes, uso, produto, processo).

3. Fortalecer o NIT como “boutique de negócios”: trilhas setoriais (saúde, agritech, energia, digital), playbooks de freedom to operate e term sheets padrão. Onde o NIT não alcançar, parcerias com escritórios especializados para picos de demanda e áreas críticas.

4. Do depósito ao mercado: funil com KPIs claros:

    • % de divulgações de invenção avaliadas em até 30 dias
    • % de pedidos com busca de anterioridade formal
    • Taxa de licenças assinadas por família de patente
    • Tempo médio do disclosure até term sheet
    • Receita anual de licenciamento/royalties e nº de startups a partir de PI

5. Prototipação e gap funding: pequenas bolsas (R$ 50–200k) para proof-of-concept e testes regulatórios mínimos aumentam o valor de licenciamento (e a taxa de sucesso com empresas).

6. Estratégia internacional seletiva: onde houver tração clara, usar PCT para ganhar tempo/territórios prioritários. (Evitar depósito no exterior “por princípio”; priorizar onde há market pull.)

7. Política de royalties simples e transparente:  regras objetivas de partilha (inventores/NIT/departamento/universidade), cap administrativo e fast-track decisório para propostas de licenciamento.

E quanto ao problema da “novidade perdida”?

No Brasil, a proteção de patentes exige novidade absoluta: se a invenção foi divulgada antes do depósito (salvo exceções legais muito específicas), perde-se o requisito e a proteção. Na prática, tese pública, pôster, edital com descritivo técnico ou mesmo entrevista podem matar o ativo. O caso que citei no início é exemplar: depósito mal redigido + publicação = indeferimento e impossibilidade de redepósito com claim abrangente.

Um convite às universidades e aos inventores

Temos bolsões de excelência (Unicamp, UFV, IFC e várias federais/estaduais), e o Brasil segue relevante no contexto regional. Contudo, para transformar ciência em impacto social e econômico, precisamos tirar fricção do caminho: processo, gente, métricas e mercado. Onde esses quatro vetores se alinham, os resultados aparecem nos rankings de depósitos e, principalmente, nas licenças que viram produto.

 

Maysa Zardo

[1] In World Intellectual Property Indicators 2024: Highlights – Patents Highlights

[2] In anuario-estatistico-pi-2024.pdf

[3] In University patents in Brazil and its states : Revista Pesquisa Fapesp

[4] In Unicamp é 3ª universidade que mais depositou patentes de invenção em 2023 no Brasil – Notícias – Jornal da Unicamp

[5] In 160309_radar43.pdf

Maysa Zardo
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