TRIBUTAÇÃO ESTRATÉGICA

A economia digital entrou no jogo tributário — será o fim da mais zona cinzenta?

Por anos, a economia digital operou em um terreno de informalidade e lacunas normativas que, embora férteis para inovação, geravam insegurança jurídica e riscos relevantes para empresas. Esse cenário mudou.

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e da Lei Complementar nº 214/2025 inauguram um novo modelo tributário baseado na incidência sobre o valor agregado, por meio da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). A mensagem é clara: o ambiente digital passa a operar sob um sistema mais estruturado, transparente e exigente.

A incorporação da economia digital ao novo modelo

A nova legislação abrange expressamente serviços digitais como computação em nuvem, softwares por assinatura (SaaS), licenciamento e hospedagem de dados, intermediação via plataformas digitais, monetização de conteúdo e operações com criptoativos.

Ainda que expressões como “inteligência artificial” não estejam mencionadas de forma literal, o conceito de serviço incluído no novo sistema é suficientemente amplo para abranger aplicações automatizadas baseadas em software, como algoritmos, modelos de IA e machine learning.

Criptoativos e o novo enquadramento fiscal

A Reforma Tributária também estabelece um marco claro para a tributação de ativos digitais. Com base no artigo 229 da LC nº 214/2025, em alinhamento à Lei nº 14.478/2022 (Marco Legal dos Criptoativos), o Brasil passa a tratar operações com ativos virtuais como prestação de serviços — ainda que esses ativos não sejam reconhecidos como moeda ou valor mobiliário.

Isso significa que, do ponto de vista fiscal, a venda, troca ou intermediação de tokens, stablecoins e demais criptoativos está sujeita à CBS e ao IBS, como qualquer outra atividade econômica. O enquadramento atinge exchanges, plataformas peer-to-peer, intermediários que recebem comissão ou margem em ativos digitais, e empresas que remuneram colaboradores, parceiros ou afiliados em criptoativos.

Na prática, o empresário deve estar atento a três movimentos:

1. Adoção de criptoativos em modelos de negócio — exige parametrização contábil e tributária alinhada ao novo conceito de “serviço oneroso digital”.
2. Relacionamento com terceiros — pagamentos em tokens ou moedas digitais passam a gerar obrigações acessórias e riscos de não conformidade.
3. Uso estratégico de tecnologia blockchain — embora a tecnologia continue sendo um diferencial competitivo, sua integração precisa estar blindada do ponto de vista regulatório e fiscal.

O principal ponto de atenção: as operações que envolvem ativos digitais deixarão de estar em “zona cinzenta”. Passam a ser rastreáveis, tributáveis e exigem documentação formal. Ignorar isso é abrir espaço para autuações e sanções — ou até para bloqueios no sistema financeiro tradicional, cada vez mais integrado às exigências da Receita Federal e do Comitê Gestor do IBS.

Formalização como critério de permanência no mercado

A responsabilização solidária das plataformas digitais, prevista na LC nº 214/2025 (art. 22 e parágrafos), altera de forma estrutural o funcionamento do mercado. Agora, marketplaces, aplicativos e intermediadores poderão ser responsabilizados pelos tributos de seus usuários — especialmente quando se tratar de prestadores de serviços informais, sem inscrição fiscal ou emissão de nota.

Para os empresários que operam plataformas digitais, isso implica uma revisão completa nos mecanismos de controle:

•  Sistemas de verificação automática da regularidade fiscal de vendedores e prestadores.
•  Políticas contratuais mais rigorosas, com cláusulas de responsabilidade tributária e exigência documental desde o onboarding.

Já para o pequeno empreendedor digital — criadores de conteúdo, freelancers, micro fornecedores e afiliados —, a informalidade deixa de ser tolerada pelas plataformas. A nota fiscal se torna um critério de acesso. Sem ela, o prestador pode ser bloqueado, ter pagamentos retidos.

A consequência é clara: quem não se formalizar, ficará de fora.

Nesse novo contexto, regimes simplificados como o MEI e o Simples Nacional continuam sendo importantes instrumentos de entrada, mas precisam ser acompanhados de orientação contábil e tributária, com organização documental mínima. A regularidade fiscal passa a ser não só uma exigência legal, mas uma vantagem competitiva — e, em alguns casos, uma condição de sobrevivência.

Conclusão: digital e tributo não se separam mais

A economia digital movimenta bilhões e tem se tornado mais visível, sistematizado e inevitável. Empresas que atuam no setor precisam internalizar as novas regras não apenas como uma obrigação legal, mas como um fator de segurança operacional, gestão de riscos e vantagem competitiva.

O tributo, antes quase invisível no digital, agora é parte estruturante do modelo de negócio. Dominar essa nova lógica será diferencial decisivo para liderar no mercado que emerge.

 

Fontes e Referências:

Emenda Constitucional nº 132/2023; Lei Complementar nº 214/2025; Lei nº 14.478/2022 (Marco Legal dos Criptoativos); OCDE – Tax Policy Reforms 2023; Receita Federal do Brasil – Diretrizes para Economia Digital; Portal Jota Contábil – Análise de impactos da Reforma Tributária no setor digital; Ardanaz S.A. Advogados – Parecer técnico sobre responsabilidade tributária de plataformas; IPEA – Nota Técnica sobre Digitalização e Tributação; BNDES – Estudos sobre transformação digital e informalidade.

 

Emanuelle Lemos

Emanuelle Lemos
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