A discussão sobre o uso medicinal da Cannabis no Brasil avançou bastante nos últimos anos, ainda que a passos lentos, principalmente devido ao empenho da Anvisa e grande batalha dos pacientes e suas famílias, associações e especialistas. Mas mesmo essa guerra ainda não foi totalmente vencida, apenas algumas batalhas. Os tratamentos com Cannabis ainda são caros, já que os medicamentos devem ser importados, e mesmo os que já podem ser adquiridos na farmácia, também são fabricados com insumos importados, pois o cultivo local da planta ainda não está regulamentado.

Também é possível recorrer às associações de pacientes que obtiveram na Justiça um salvo conduto para cultivo e elaboração do óleo medicinal. Ou seja, o Poder Judiciário suprindo a deficiência do Legislativo, mas isso fica a critério de cada julgador, então um paciente pode ter o azar de seu processo cair nas mãos de um juiz contrário à causa e simplesmente ter negado o direito que outra pessoa obteve, simplesmente pela sorte de seu processo ter caído com outro julgador. Enfim, é possível ver que mesmo o uso medicinal ainda tem um caminho a ser trilhado.

No entanto, as palavras uso “adulto” ou “recreativo” parecem ser proibidas nessa discussão, como se maculassem a importância do pleito do uso medicinal. Pouquíssimos defensores do uso medicinal se atrevem sequer a mencionar o uso adulto, evitando misturar os temas e que isso posso prejudicar a pauta relacionada à saúde.

O que causa estranheza é que mesmo com os inúmeros relatos dos benefícios alcançados por pessoas com doenças graves, como autismo, epilepsia, dentre outras, com o uso da Cannabis, ninguém se atreve a mencionar os benefícios que também são obtidos com o uso adulto, afinal, como já ouvi um médico falar, nenhum uso de uma planta como a Cannabis pode ser apenas recreativo.

A Cannabis é uma planta tão complexa, com tanto potencial de trazer benefícios para o ser humano, que vale questionar por qual motivo apenas seu uso medicinal parece ser aceitável ou possível de ser regulamentado pelos legisladores. Trata-se da mesma planta, se ela faz bem para quem está doente, por que seria tão demoníaca para quem só quer se sentir bem? Nesse sentido, percebe-se que a discussão em torno da Cannabis está rodeada de hipocrisia, desinformação, e, principalmente, dogmas religiosos, mas pouco embasamento científico.

De fato, essa discussão se torna ainda mais necessária se pensarmos que, sob o aspecto jurídico, proibir que um cidadão cultive em sua residência, para uso próprio, seja por qual motivo for, uma planta oriunda da natureza, que comprovadamente traz benefícios à saúde, é um desrespeito aos direitos individuais do cidadão, como a liberdade individual, o direito de propriedade e a inviolabilidade de domicílio.

Mais do que isso, trata-se, inclusive, de um desrespeito ao artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz: “Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar (…)”. Enquanto a cannabis constava na lista de substâncias entorpecentes da OMS, ainda existia um mínimo sentido, mesmo que pareça meio absurdo o Estado determinar que algo da natureza simplesmente não possa “existir” ou ser cultivado por conta da sua determinação.

No entanto, tendo em vista que a Cannabis foi retirada de referida lista, sendo caracterizada como uma planta medicinal, isso só faz parecer ainda mais abusiva e ilegítima tal proibição. E alguns países já entenderam isso e liberaram o uso e plantio em casa, proibindo apenas o comércio da produção, são eles: nosso vizinho Uruguay, que efetivamente parece ser o país que mais respeita as liberdades individuais na América Latina, já que foi o primeiro a regulamentar a Cannabis, o divórcio e o voto feminino; Canadá, México, África do Sul, Malta, Geórgia, 21 estados dos EUA e Costa Rica.

O respeito às liberdades individuais demonstra o nível de maturidade regulatória de um país e, principalmente, o grau de autoritarismo dos governantes em relação aos cidadãos e isso se estende a vários aspectos de liberdades, inclusive financeira e de oportunidades. O Brasil ainda é o país que, há 30 anos atrás, praticou literalmente um confisco nas economias de todos os brasileiros, sob o nome de “empréstimo compulsório”.

E nossas cadeias ainda estão repletas de pessoas que foram encarceradas por quantias insignificantes de maconha. Como a história absurda do jardineiro Márcio Roberto Pereira, da associação canábica Maléli, de Marília (SP), que passou 32 meses preso por transportar oito frascos de óleo de Cannabis e 100 gramas em flores para um paciente com câncer de outra cidade.

Nesses dias em que estamos lidando com a perda de Rita Lee, um ídolo da cultura brasileira, transgressora e à frente de seu tempo, defensora pública da Cannabis, podemos ver a todo momento nas redes sociais um vídeo de seu show de despedida dos palcos, onde a polícia invade a plateia para revistar com brutalidade o público à procura de “baseados”, causando uma enorme indignação na cantora, que acabou detida por desacatado à autoridade por ter discutido com os policiais, aos 67 anos.

O resumo é: ou evoluímos como povo e passamos a exigir dos legisladores que se esforcem, de verdade, para criar leis que nos tragam a oportunidade de um Brasil efetivamente democrático e livre, ou continuaremos como o país que parece que saiu da Ditadura na semana passada…

© 2023 Emília M Campos

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