Nos últimos anos as stablecoins passaram de um nicho do mercado cripto para uma infraestrutura essencial no cenário financeiro global. Embora o discurso tradicional aponte seu uso para remessas internacionais, pagamentos eficientes e reserva de valor em mercados emergentes, a verdadeira revolução está em curso: a transformação das stablecoins em peças fundamentais da infraestrutura do mercado financeiro tradicional e da automação financeira baseada em IA.

Mas essa evolução pode vir com um custo alto: a perda da descentralização.

A narrativa de stablecoins como “apenas dinheiro digital” está desatualizada. Grandes players institucionais, incluindo bancos e empresas de tecnologia, estão testando stablecoins como mecanismo de liquidação em mercados financeiros. O JPMorgan, por exemplo, já utiliza sua JPM Coin para liquidações de transações institucionais. O grande passo será sua adoção em operações de margem, derivativos e títulos públicos, áreas tradicionalmente dominadas por instituições financeiras tradicionais.

O que isso significa? Se as stablecoins forem integradas às infraestruturas reguladas, poderão substituir processos bancários tradicionais, reduzindo intermediários e aumentando a eficiência. Mas isso também significa que o mercado será absorvido pelos mesmos players que os criptoativos inicialmente tentavam contornar.

Depósitos tokenizados: a nova ameaça às stablecoins privadas

A grande tendência regulatória é a tokenização do dinheiro bancário. Bancos estão testando depósitos tokenizados, uma versão digital de depósitos bancários que roda em blockchain e tem liquidez direta no sistema financeiro tradicional. O UBS já lançou seu token de depósito, e outras instituições seguem pelo mesmo caminho.

Mas isso traz um grande problema para stablecoins privadas. Depósitos tokenizados têm reserva garantida pelo próprio sistema bancário e podem ser considerados mais seguros por reguladores e instituições financeiras. Isso pode enfraquecer stablecoins como USDT e USDC e trazer um novo modelo onde apenas instituições reguladas podem emitir dinheiro digital.

Se essa tendência crescer, podemos ver um cenário onde stablecoins privadas perdem relevância e o dinheiro digital passa a ser dominado por bancos e governos.

A ascensão dos “Dólares Sombrios” e a reação dos governos

Stablecoins lastreadas no dólar se tornaram um fenômeno global nos últimos anos. Em países como Argentina e Venezuela, o volume de transações em USDT já supera o de dólares físicos nos bancos locais. Esse fenômeno criou um novo problema para os governos: como lidar com uma moeda digital soberana, mas fora do controle do banco central?

Muitos países já estão reagindo: sanções e restrições ao uso de stablecoins para evitar a dolarização descontrolada; criação de alternativas reguladas, como CBDCs privadas ou stablecoins emitidas sob forte supervisão; tributação agressiva, para desencorajar seu uso como moeda alternativa.

Se essa tendência continuar, stablecoins privadas podem enfrentar bloqueios estatais, reduzindo sua circulação e abrindo espaço para moedas digitais totalmente controladas por governos e bancos.

Stablecoins como infraestrutura para IA e IOT

Uma fronteira menos explorada, mas potencialmente disruptiva, é o uso de stablecoins para pagamentos entre máquinas (IOT) e automação financeira baseada em IA.

Imagine contratos inteligentes autônomos negociando, gerenciando ativos e liquidando transações em stablecoins, sem necessidade de intermediários humanos. Isso abriria um novo paradigma para mercados financeiros, supply chain e até mesmo relações contratuais entre empresas.

E isso é importante porque stablecoins poderiam alimentar uma infraestrutura financeira descentralizada para IA, permitindo um novo tipo de economia programável, e bancos poderiam perder o controle sobre certos fluxos financeiros, já que máquinas poderiam transacionar entre si sem passar por intermediários tradicionais.

Se essa tendência crescer, a descentralização pode encontrar uma nova força na convergência entre IA e stablecoins.

Regulamentação global: o mundo caminha para um modelo único?

Governos e reguladores estão correndo para definir regras para stablecoins. Enquanto os EUA ainda não estabeleceram uma estrutura federal, a União Europeia, Japão, Reino Unido, Hong Kong, Brasil e Emirados Árabes já estão adotando regulações claras.

Mas há um debate maior acontecendo: o mundo precisa de uma stablecoin global regulamentada?

O BIS (Banco de Compensações Internacionais) já discute a criação de um consórcio global para emissão de stablecoins, onde bancos centrais teriam controle sobre sua liquidação e governança. Isso poderia acabar com as stablecoins privadas ou, no mínimo, torná-las irrelevantes em mercados institucionais.

Se esse modelo avançar, veremos o nascimento de stablecoins 100% regulamentadas, emitidas por múltiplos bancos centrais e compatíveis com a estrutura financeira global. Mas, novamente, onde fica a descentralização?

A trajetória das stablecoins está claramente dividida entre dois caminhos, um futuro onde stablecoins:

são regulamentadas e integradas ao sistema bancário, perdendo sua natureza descentralizada;

sobrevivem como uma alternativa descentralizada, enfrentando resistência governamental e limitações regulatórias.

Se as stablecoins forem totalmente absorvidas pelo sistema bancário, sua função original de permitir transações financeiras descentralizadas e sem permissão pode desaparecer. Mas se permanecerem descentralizadas, podem enfrentar um cenário onde seu uso será restrito ou até mesmo criminalizado em algumas jurisdições.

No fim das contas, o verdadeiro dilema não é apenas se stablecoins vão substituir o dinheiro tradicional, mas se elas poderão fazê-lo sem perder sua essência descentralizada.

Emília Campos

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